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Participating on the project “ IMP on the road 2018”

A ciência, a pseudociência, a medicina e as áreas holísticas — ou o risco de se colocar a farinha toda no mesmo saco.

Há pouco mais de um ano, a 14 de maio de 2018, o jornal Público apresentou como notícia de capa: “Conselho de Ética alarmado com fraude na investigação científica”. Folheamos o jornal e lemos na página 14 – ‘Atualmente “assistimos a um conflito entre o valor da verdade em ciência e a lógica imposta pelas métricas de avaliação dos investigadores e das instituições”. Lógica essa que, diz o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV) num relatório sobre a integridade na investigação científica, de fevereiro de 2018, “tem obrigatoriamente que ser revisitada”.’

Ficamos a saber através desta reportagem escrita por Rita Costa, que Portugal é um dos poucos países no mundo que não têm uma estratégia nacional nem um organismo institucional que assegure a vigilância e manutenção de códigos de ética e de conduta em investigação científica ficando estes a cargo das Universidades, Centros de Investigação e dos próprios investigadores. A urgência de verificação de “suspeitas de fabricação, falsificação e de omissão deliberada de dados, que são violações graves do ethos 1) da investigação” seriam as principais funções deste organismo nacional de acordo com o relatório apresentado pela CNECV. Lamentavelmente, uma conduta questionável na investigação científica não é uma preocupação exclusiva a Portugal e casos de fraude encontram-se um pouco por todo o mundo o que, de acordo com a CNECV, se deve à extrema competitividade no mundo científico, a razões de carácter individual dos investigadores como vaidade, ambição e paixão desmedida por uma determinada linha de pensamento, bem como a questões estruturais das próprias organizações que devem garantir o bom funcionamento de estruturas de vigilância internas, mas que, no entanto, precisam ser supervisionados pelo referido organismo nacional que deve ser criado num futuro o mais próximo possível.


Dois meses antes, a 14 de março de 2018, a credibilidade da comunidade Macrobiótica internacional tinha sido duramente abalada com a notícia sobre o desmantelamento em Itália de uma “seita macrobiótica” que tornava reféns e escravizava os seus clientes e alunos. Esta notícia 2) foi amplamente divulgada e explorada pelo jornal online The Guardian. Diz-nos a notícia que Mario Pianesi, um ilustre e reconhecido cidadão italiano, fundador e mentor da alegada seita, criou a dieta MaPi fundamentada nos princípios da Macrobiótica estruturados por George Ohsawa. Partindo da filosofia macrobiótica, terá construído um grande negócio que incluía agricultura biológica, comércio de produtos, aulas e retiros de cura. De acordo com esta e outras notícias posteriores sobre o caso, Mario Pianesi, a sua atual mulher e mais alguns membros do negócio, ficaram sob investigação e serão sujeitos a processo-crime que envolve até suspeitas de homicídio.

A Macrobiótica foi estruturada na primeira metade do século XX por George Ohsawa e até hoje tem-se espalhado um pouco por todo o mundo. A sua filosofia é apaixonante e foi a minha inspiração para iniciar o Espaço 4 Elementos, em Lisboa, que se dedica à divulgação e prática de diversas áreas holísticas, mas em especial à Macrobiótica.

Eu e Mario Pianesi fomos assim inspirados pelos mesmos princípios...


A fragilidade do pensamento humano

Nem a primeira notícia define a globalidade da qualidade da produção científica, nem a segunda representa a integridade dos que trabalham em Macrobiótica. Do mesmo modo, o pensamento científico não se reduz à qualidade moral de alguns dos seus cientistas nem a visão holística da vida e do ser humano fica comprometida pela apropriação distorcida dos seus fundamentos.

Duas simples notícias, no meio de milhares de outras que nos assaltam diariamente, seja por meios tradicionais – a imprensa escrita – seja através dos meios mais modernos – a internet e as redes sociais. Mas, por que motivo eu prestei atenção a estas duas notícias em concreto?

Porque, de alguma forma, estou pessoalmente implicada em ambas.

Interesso-me e defendo o que vai ao encontro das minhas crenças prévias independentemente de me terem sido transmitidas pela educação que recebi, pelo meio cultural em que cresci ou pelas minhas opções ao longo da vida. “Cada indivíduo do nosso Ocidente, por mais que se proclame livre, está preso por inúmeros elos de ligação a diversas micro-sociedades, cada uma das quais lhe inculcou formas de pensar e maneira de vivência que podem entrar em conflito e impedem decisões.” escreveu Francisco de Paula Leite Pinto 3) em finais do século XX num curioso artigo de reflexão sobre a evolução da Universidade.

Francisco de Paula Leite Pinto foi Ministro da Educação durante o Estado Novo e após a queda da ditadura em Portugal passou de português privilegiado, figura notável na política nacional, a refugiado político. Para quem conhece a interpretação Yin e Yang desenvolvida pelo Taoísmo na China antiga é imediata a compreensão deste caso real, e de muitos outros, sob a perspetiva de que tudo existe em transformação permanente entre polos opostos e complementares.

O mundo não tem normas
porque o normal pode tornar-se anormal

e o bem pode transformar-se em monstruosidade.
(Excerto do poema LVIII do Tao Te King) 4)

Acreditar profundamente nas nossas escolhas individuais não nos garante que sejam absolutamente corretas ou válidas para todas as outras pessoas. O inverso é igualmente verdadeiro, numa multidão poderá haver apenas uma pessoa a pensar e a agir de modo diferente, mas isso não significa que seja ela quem está errada.

Se há algo que a história da humanidade nos ensina é que sempre que se pretende definir uma via única para chegar a um determinado lugar os resultados dificilmente são positivos. Disto é exemplo o Estado Novo em Portugal, época em que o pensamento livre, mesmo que inconscientemente condicionado, não era permitido.


Liberdade de expressão e de escolha

Aqui nos colocamos face a face com um dos grandes desafios das sociedades democráticas contemporâneas – viver em liberdade individual respeitando a liberdade social.

Porventura o nosso maior desafio, sobretudo o dos legisladores e órgãos de governo, encontra-se em definir o que está certo e o que está errado, ou melhor dizendo, o que se permite e o que não se permite, o que se coloca dentro da Lei ou, pelo contrário, se torna ilegal. No limite, estamos perante o paradoxo da tolerância estudado pelo filósofo da ciência Karl Popper na sua obra The Open Society and Its Enemies, onde apresenta a ideia de que a tolerância ilimitada numa sociedade leva, paradoxalmente, ao desaparecimento da tolerância e dos tolerantes que a defendem.

Considerando que as duas notícias referidas no início deste artigo nos falam de atividades opostas – ciência versus pseudociência 5) (na qual a Macrobiótica tem sido frequentemente incluída) –, em ambas encontramos pontos de contacto: 1) a ambição humana desmedida como fonte de desordem e de incentivo a práticas, por definição legislativa, ilegais; e 2) a necessidade de regulação e supervisão externas como forma de assegurar o cumprimento de princípios éticos e morais (num caso uma suposta entidade que ainda não existe em Portugal, noutro a polícia que assumiu a investigação desde a primeira queixa em 2013).

A essência humana é facilmente corrompida – este é um conhecimento de senso comum que não significa que todas as pessoas sejam corrompíveis e tenham potencial para se tornarem charlatãs. O que nos une nas diferenças é frequentemente a profunda convicção naquilo em que acreditamos. Por vezes criamos pontes e construímos algo que perdura, outras elevamos muralhas e comprometemos o futuro de gerações.

Conhecimento baseado no senso comum e nas tradições populares e conhecimento fundamentado em métodos científicos entrecruzam-se desde os primórdios da humanidade e assim devem continuar. Se, enquanto indivíduos e sociedade, tivermos a capacidade de efetivamente aprender com os erros do passado, é possível que estas duas formas de conhecimento trabalhem em conjunto criando novos caminhos de (re)construção dos discursos associados às áreas convencionais e não convencionais. E, acima de tudo, é fundamental a reflexão acerca do direito à livre decisão sobre o nosso corpo e a nossa saúde física e emocional. A cada pessoa cabe o dever de se informar e de tomar decisões conscientes. Ao governo cabe o dever de legislar de forma inclusiva captando as novas necessidades e expectativas da população e informando-a com clareza e imparcialidade. Às instituições cabe o dever de exercerem o seu trabalho com rigor, respeitando princípios éticos e a lei em vigor. Ao mercado e à qualidade dos serviços prestados cabe tudo o resto. Será o consumidor, através do seu processo de (in)formação quem irá definir a evolução dos serviços – quais vão ser verdadeiramente importantes no futuro – e não um qualquer organismo, em defesa do poder de uma determinada profissão, a julgar o que deve ou não fazer parte do mercado.


Reféns do conhecimento científico?

O que define estarmos tristes ou alegres? O que determina sermos artistas ou cientistas? Porque alguns de nós nascem com o dom da palavra e outros sofrem de uma timidez tão profunda que em público congelam? Porque existe o amor?...

O conhecimento científico trouxe-nos um entendimento concreto sobre o funcionamento do cérebro, do ADN, do processo digestivo, do coração, das articulações... conseguiu reduzir drasticamente as taxas de mortalidade e tem ajudado milhares de casais a conquistarem o sonho de se tornarem pais biológicos através da procriação medicamente assistida... Mas não consegue, ainda, responder a perguntas sobre as particularidades que nos separam realmente dos restantes animais que habitam a Terra e que nos tornam intrinsecamente humanos. E apesar disso, subitamente, em menos de um século, a humanidade ficou refém desta verdade absoluta: a evidência científica.


Qual o impacto da exigência de validação científica quando falamos de áreas subtis como a espiritualidade ou a energia que percorre o nosso corpo?

O efeito imediato será sempre o da dúvida e do medo que se instala em quem poderá sentir o apelo de experimentar algo que desconhece. Perante as figuras de autoridade médicas, científicas e políticas que nos dizem que as práticas holísticas não funcionam – porque não existe prova – e que os seus efeitos se resumem a atos de fé, a maioria das pessoas irá retroceder e resignar-se às formas convencionais de abordagem do corpo e da saúde. Destaquei as figuras de autoridade por ser o argumento mais comum utilizado contra as áreas holísticas 6), no entanto a estratégia de comunicação utilizada pelas áreas convencionais em defesa do seu domínio é exatamente a mesma! Por este motivo, é verdadeiramente urgente dotar as pessoas de raciocínio crítico, para que se habituem a pensar por si próprias sem se deixarem manipular por discursos comerciais ou de poder, independentemente de a quem pertencem.

Estarão abrangidas pelo rótulo de inaceitável por falta de evidência da sua eficácia a Acupuntura, a Medicina Tradicional Chinesa e a Homeopatia. Se passarmos para práticas como Reiki, Meditação, Yoga, Chi Kung, Life Coaching, Terapia Prânica, Radioestesia, Mesa Radiónica, Medicina Ayurvédica, Macrobiótica, etc. ... a confusão e a intolerância na discussão agudizam-se.

Não quero deixar aqui juízos de valor sobre nenhuma das áreas – convencional ou não convencional – porque defendo acima de tudo o direito à escolha individual e o que me importa neste artigo é recordar que a pluralidade de pontos de vista sempre existiu e que os benefícios de uma verdade absoluta não existem, simplesmente porque não existe uma verdade absoluta. O que existe sim, são convicções absolutistas que nos podem levar a adotar comportamentos cegos e intolerantes.


O futuro das áreas holísticas dedicadas à saúde humana

É mais do que evidente a procura crescente de soluções complementares – e não alternativas, procura-se a complementaridade e não a substituição – para a resolução de problemas de saúde mais ou menos graves. É igualmente evidente o esgotamento dos serviços e dos profissionais de saúde em Portugal, funcionando no limite sem possibilidade de proporcionarem aos doentes o tempo e a atenção de que necessitam. São muitas as causas para o desgaste do Serviço Nacional de Saúde 7), mas os estilos de vida adotados pela população poderão ter um impacto determinante na sua manutenção. As abordagens holísticas da saúde, abrangidas ou não pela Lei N.º 71/2013, de 2 de setembro, que consagra as Terapêuticas não Convencionais (TNC) (recentemente promulgada a sua 2ª alteração que irá permitir aos terapeutas o acesso às cédulas profissionais de forma equitativa), poderão ser um contributo valioso para a crescente adoção de hábitos de vida mais saudáveis no presente e no futuro.

As práticas complementares focam-se sobretudo na prevenção, na compreensão dos ciclos naturais da vida e na mudança de hábitos no sentido de se atingir um maior bem-estar físico e emocional o que, em última instância, irá diminuir o risco de desenvolvimento de doenças graves e consequentemente reduzir a probabilidade de se necessitar de cuidados prestados pelo SNS. Desta forma deixaremos mais espaço para a medicina convencional tratar com toda a atenção os casos agudos e acidentais que dela dependem.


No meio de livros antigos deixados por um avô muito especial, encontrei uma edição de 1977 do “Tao Te King” 4) publicada pela Editorial Estampa. Na introdução, o editor diz-nos que ‘segundo a tradição chinesa num bom poema “o número de palavras é limitado, mas as ideias sugeridas são inumeráveis”.’ E diz-nos também que ‘Ao invés da filosofia ocidental, que envereda por um saber positivo em desenvolvimento crescente, o pensamento oriental é antes uma sageza 8) que não visa transformar-se em ciência.’

Em 1977, Portugal ainda despertava de 41 anos de ditadura e provavelmente a publicação deste livro nunca teria sido permitida pela censura do Estado Novo uma vez que tudo nele nos leva para a contemplação, a reflexão, a bondade e o respeito pelas leis naturais.

 Na pág. 71 desta edição podemos ler o poema LVIII:

Quando o governante é indulgente
o povo permanece puro.

Quando o governante é intransigente
o povo torna-se transgressor.

A felicidade repousa sobre a infelicidade
a infelicidade esconde-se na felicidade.

Onde acaba tudo isto?
O mundo não tem normas
porque o normal pode tornar-se anormal
e o bem pode transformar-se em monstruosidade.

Desde há muito os homens
se enganam a este respeito.

Assim o santo disciplina sem ofender
purifica sem vexar
rectifica sem oprimir
ilumina sem ofuscar.

Um poema com mais de 700 anos que poderia ter sido escrito hoje.

Esta é a linha que separa o pensamento científico em permanente evolução, mutação e correção, do pensamento holístico que apresenta um fundo intemporal, imutável, imóvel, tão atual antes como agora, mas ao mesmo tempo de extrema permeabilidade e adaptabilidade através dos tempos.

Portugal está em desenvolvimento no que respeita a divulgação e aceitação de terapias de cuidado da saúde não convencionais, mas o Brasil, talvez o país no mundo mais avançado nesta área devido ao seu ecletismo enquanto nação, consagrou na Lei, desde 1996, a profissão de Terapeuta Holístico. Ao abrigo desta Lei, num Terapeuta Holístico cabem diferentes práticas não convencionais desde que a sua formação tenha sido realizada numa instituição legal e reconhecida pelo Ministério da Educação. Se tivermos em mente o benefício para o cidadão, compreenderemos como é urgente fazermos este caminho em Portugal, legislando e fiscalizando, garantindo o livre acesso a serviços de qualidade, independentemente da área, sem julgamentos.


O risco de se colocar a farinha toda no mesmo saco

Tradicionalmente, as pessoas tinham extremo cuidado na preservação dos seus alimentos, não existiam frigoríficos e a escassez era frequente. Sabia-se então que os grãos de cereais transformados em farinha se degradavam facilmente e que uma farinha estragada ou de má qualidade contaminava rapidamente a de boa qualidade. Do cuidado com a conservação das farinhas chegou-nos até hoje a paixão pelo pão branco e mais macio. E daqui surgiu também a expressão são homens da mesma farinha, ou seja, são homens da mesma qualidade. Esta expressão teve origem no latim e ao longo dos séculos o seu uso generalizou-se no mau sentido para nos referirmos a pessoas que têm os mesmos vícios ou defeitos.

Qualquer generalização envolve o risco de preconceito e de pequenez de espírito. A mistura de raças, de culturas e de experiências tem-nos deixado heranças maravilhosas, algumas entretanto destruídas por discursos de intolerância. Não entremos em discursos generalizadores numa área crucial como a saúde humana, exijamos seriedade, mas não abdiquemos da diversidade da criação humana que tanto se aplica ao pensamento científico como ao senso comum.


Numa multidão poderá haver apenas uma pessoa a pensar e a agir de modo diferente, mas isso não significa que seja ela quem está errada.


1) Ethos - termo de origem grega utilizado em retórica, que significava o costume, o hábito, o carácter que o escritor ou orador adotava para dar uma imagem dele mesmo que inspirasse confiança no público; designa igualmente uma descrição explícita alusiva dos costumes da época. Fonte: http://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/ethos/

2) https://www.theguardian.com/world/2018/mar/14/italian-police-target-sect-which-imposed-macrobiotic-diet

3) http://analisesocial.ics.ul.pt/documentos/1224251958K1qWZ7fk4Hl54QU9.pdf 

Francisco de Paula Leite Pinto foi engenheiro, escritor, professor universitário e Ministro da Educação Nacional (1955-1961) durante o Estado Novo. Depois do 25 de Abril de 1974 continuou na docência fora de Portugal, em França e no Brasil.

4) Livro da Via e da Virtude, atribuído a Lao Tse (duas gerações anteriores a Confúcio), mas sabe-se atualmente que será bastante posterior, provavelmente do séc. III. É considerado o mais antigo livro da filosofia chinesa. Fonte: “Tao Te King”, 2ª edição, Editorial Estampa, 1977.

5) “Pseudociência é qualquer tipo de informação ou atividade que se diz baseada em factos científicos, mas que não resulta da aplicação válida de métodos científicos.” Definição proposta em Pseudociência, de Marçal Antunes, editado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2014.

6) Argumentação amplamente utilizada em Pseudociência, de Marçal Antunes.

7) Sobre o SNS aconselho a leitura de Pela Sua Saúde, de Pedro Pita Barros, editado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2013.

8) Sageza significa “carácter do que ou daquele que é sage”. Sage, por sua vez, é «aquele que alia a virtude à sabedoria; aquele cujos juízos e cujo comportamento são inspirados e governados pela retidão de espírito, pelo bom senso; aquele que só estima os verdadeiros bens e, por isso, vive sem as ambições, as inquietações e as deceções que perturbam a existência do homem comum; filósofo». Fonte: https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/consultorio/perguntas/o-significado-de-sageza/19396